Com popularidade recorde, grupo sai forte de cúpula e caminha para se tornar arena para questões globais.
Poucos acreditavam que os líderes do Brics iriam conseguir na 15ª cúpula do grupo, tomar uma decisão sobre a expansão já com os nomes dos novos integrantes e data da sua adesão marcada para 1º de janeiro de 2024.
Imaginava-se que se avançasse na elaboração de critérios para uma decisão mais à frente. Sobretudo no Brasil havia muita resistência, dentro e fora do governo, à ideia de mais membros plenos, preferindo um tipo de Brics+, onde os países interessados participariam como parceiros do grupo. Além disso, havia sempre a possibilidade de aderir como membro pleno do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) criado pelo Brics, este sim com um tratado constitutivo que prevê a entrada de qualquer membro das Nações Unidas, tomadores ou não de empréstimos.
A decisão mostra a vitalidade política do grupo e representa, sem dúvida, vitória para os principais defensores da ideia de expansão, China e Rússia, e para a presidência da África do Sul, país anfitrião que assim, inaugurou uma nova fase para o Brics.
Mas há exagero ao sugerir que seria uma derrota da posição de Brasil e Índia que teriam maior interesse em manter o grupo mais restrito e em um procedimento mais cauteloso.
Com a expansão, o grupo ganha maior projeção como um polo alternativo às articulações dos países centrais, em particular o G-7, seu maior representante. E isso, por exemplo, é positivo para todos os seus membros constitutivos. Ao final, o Brics tem a vocação histórica de contribuir com a ampliação do poder de influência dos países do Sul Global. E, ser alternativa não significa necessariamente ter postura antiocidental ou voltada para rupturas.
Com isso o Brics deu um terceiro passo para a frente. O primeiro foi a própria constituição do grupo em 2009 com a primeira cúpula em Ekaterinburgo na Rússia, ainda sem representação do continente africano. Rússia, Índia e China já tinham longa história de rivalidade, cooperação, tensões, alianças, guerras e aproximações, mas para o Brasil era tudo muito novo.
Não há dúvida de que o país ganhou em projeção e potencial de articulação ao apostar na iniciativa, que desde o início encontrou ceticismo sobre sua utilidade na mídia comercial brasileira e setores da academia, neste caso por não se encaixar nas categorias tradicionais de relações internacionais.
O momento da criação do grupo foi muito particular. De um lado, ocorreu um ano após o início de uma crise financeira global que teve sua origem nos EUA mas impactou o mundo todo. De outro, foi um momento que os quatro países fundadores demonstravam, uns mais que outros, pujança econômica e capacidade de resistir aos impactos da crise.
Não à toa, naquele mesmo ano, uma articulação – aparentemente insignificante – de ministros de economia e presidentes de bancos centrais, foi transformado em uma cúpula presidencial que se autodominou “o principal fórum de cooperação econômica internacional”, – papel, até então, reivindicado pelo G7 como sendo o G20. A diferença entre os dois fóruns era exatamente a participação de países em desenvolvimento, chamados de “economias emergentes”, entre os quais se destacam os membros do então Bric.
Naquele G20 se começou a discutir reformas necessárias no sistema financeiro internacional, em particular o pedido de maior influência desses países cuja economias adquiriam peso maior, mas que não era refletida na governança econômica.
O Bric, logo transformado em Brics com a adesão da África do Sul, teve papel importante de articulação no G20, pautando essa agenda chamada de democratização do sistema internacional, em particular com proposta de reforma da governança do FMI. Ao final, a crise global de 2008 evidenciou não apenas a falência da desregulamentação econômica promovida pelo neoliberalismo, mas também as alterações estruturais na economia internacional com o crescimento do peso das grandes economias em desenvolvimento de renda média.
Mas, passado o susto dos desdobramentos da queda do Lehman Brothers e afastado também o risco de crise sistêmica do capitalismo global, o G20 perdeu não somente seu peso, mas também voltou a refletir a hierarquia do sistema internacional e, sobretudo, a hegemonia do capital estadunidense.
A redução de relevância do G20 significou também o risco de uma menor articulação do Brics e diante disso o grupo tomou seu segundo e corajoso passo: a criação de uma institucionalidade financeira internacional própria, sem abrir mão de continuar reivindicando reformas nas estruturas existentes: nasceu assim, em 2014, na cúpula em Fortaleza, sob presidência da Dilma Rousseff, o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), conhecido popularmente como banco do Brics e o o Arranjo Contingente de Reservas.
Este último prevê o compromisso dos cinco países de emprestar recursos de forma imediata e líquida a algum deles que solicite, em moeda conversível. Essa cláusula nunca foi acionada, embora a sua própria existência de certa forma, sirva como garantia adicional.
Diferente é o NDB que se desenvolveu como maior banco de desenvolvimento sem participação dos países do capitalismo central. Em seus oito anos de existência, já emprestou US$ 33 bilhões (R$ 161 bi) e tem potencial enorme de expansão. Agora, sob a presidência de Rousseff, estabeleceu como meta chegar a 30% de seus empréstimos em moedas locais em uma demonstração concreta de criar alternativas ao uso do dólar estadunidense.
O banco previa desde o início a inclusão de novos membros e já incorporou Egito, Emirados Árabes Unidos e Bangladesh como membros plenos. A cúpula na África do Sul, foi a primeira presencial após a pandemia e ocorreu fortemente influenciada pelo impacto indireto da guerra na Ucrânia e o clima de uma nova guerra fria lançado pelo governo Joe Biden (EUA) ao insistir na tese de uma divisão do mundo em “democracias” e “autocracias”.
Da perspectiva do Sul Global o mundo está dividido entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento ou, dito de outra forma, entre aqueles que conquistarem ao longo do tempo privilégios, lançando mão de seu poder militar e industrial, e aqueles que têm um histórico de colonização e/ou exploração para superar. De um lado, aqueles, que apesar de suas retóricas, no fundo não querem renunciar aos seus privilégios e de outro, aqueles que reivindicam o direito ao desenvolvimento e soberania plena.
A reação à guerra na Ucrânia mostrou novamente a total falta de compreensão e respeito dos países do centro com os demais, que, mesmo não concordando com a invasão, considerando-a como uma inaceitável violação da integridade territorial, não são obrigados a seguir cegamente a política de confrontação da OTAN. Nesse mesmo espírito, a cúpula do G7 deste ano no Japão tentou novamente se colocar como o diretório do mundo, marginalizando mais ainda o papel do G20.
Convidado, Lula não hesitou em, nas suas intervenções – que valem a leitura -, denunciar com contundência a postura do “grupos do ricos”. O duplo padrão com relação aos refugiados de Ucrânia em comparação com aqueles de outros conflitos e guerras, ou a liberação imediata de bilhões de dólares para fornecimento de armas em comparação com a promessa do Acordo de Paris de fornecer ajuda financeira para os países pobres na luta contra às crises climáticas, entre outros, foram recebidos nos mais diversos países do Sul Global com indignação.
Isso tudo acabou reforçando a imagem de um mundo no qual se torna cada vez mais urgente criar e fortalecer espaços de articulação do próprio Sul Global.
O que era chamado de “o resto do mundo”, busca protagonismo. Isso explica em grande parte o crescimento exponencial de países querendo aderir ao Brics. Curiosamente, ao mesmo tempo, o grupo havia perdido dinamismo – apesar do funcionamento do NBD – por vários motivos: os conflitos militares na fronteira entre Índia e China, em 2020; o governo Bolsonaro no Brasil que se posicionou de forma sistemática contra qualquer projeção geopolítica do Brics; e o impacto da própria pandemia. Havia uma necessidade objetivo de dar outro passo para frente.
Os dois assuntos que ganharam destaque na fase preparatório da cúpula foram a expansão e a tal de moeda do Brics, na verdade sinônimo para desdolarização. Embora os dois assuntos sejam complexos, o segundo é infinitamente mais, e não era realista esperar uma decisão contundente nessa área, além de retomar a denúncia dos “privilégios exorbitantes” dos EUA com sua moeda nacional adotada internacionalmente, expresso pela primeira vez há quase sessenta anos pelo então ministro de economia da França, Giscard d´Estaing.
A alternativa era terminar a cúpula sem nenhuma novidade que pudesse dar novo dinamismo ao Brics. Há de se observar também que este foi provavelmente a cúpula mais observada pelas mídias internacionais – que normalmente tratam o Brics com descaso e certa irrelevância- , exatamente pelo contexto da guerra na Ucrânia.
Logo, foi uma vitória do grupo como um todo, e não só de alguns, ter conseguido chegar a um acordo anunciado pelo presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa. O Brics saiu fortalecido.
O que chama muito a atenção na lista dos países aceitos como membros plenos é a presença de quatro do chamado Oriente Médio: Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes e Egito. Uma região marcada nos últimos setenta anos por conflitos e guerras em torno do controle sobre as riquezas de petróleo e forte presença militar estadunidense.
Com a inclusão desses países o Brics reúne agora seis dos dez maiores produtores de petróleo do mundo e os dois maiores exportadores (Rússia e Arabia Saudita), além do maior importador (China). Usando dados de 2021 como referência, a nova configuração do Brics junta 42% da produção de petróleo mundial, 37% do gás, e 42% de energias renováveis. Essa última graças à grande produção de China, Índia e Brasil.
Considerando que a transição energética é contraditória com o petróleo e gás ainda tendo um papel central nas próximas duas décadas pelo menos, e exige ao mesmo tempo grandes investimentos e tecnologia para ampliar as energias renováveis, o Brics pode se tornar uma plataforma por excelência para discutir e articular esse processo de uma perspectiva ligado do Sul Global.
Além disso, pode se imaginar que Dilma Rousseff, como presidenta do NBD, esteja de olho nos fartos fundos soberanos da Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Ao mesmo tempo, pode fortalecer as propostas para a muito falada desdolarização do comércio de petróleo, outro processo bastante complexo.
O interesse de Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, tradicionais aliados dos EUA, demonstra a busca por diversificar sua inserção internacional, ciente da lenta, contraditória, mas inevitável queda da centralidade do Ocidente. Observa-se ainda o papel facilitador da China em normalizar as relações entre Arábia Saudita e Irã que agora aderiram juntos. Com relação à adesão de Argentina, infelizmente, o assunto se misturou à campanha eleitoral, gerando uma desnecessária politização que se afasta da avaliação do Brics por si só.
A declaração final da cúpula deixa claro o caráter reformista do grupo. Logo na primeira sessão, houve ênfase na “centralidade” do Fundo Monetário Internacional para a segurança financeira global, da Organização Mundial de Comércio (OMC) para o comercio internacional e do papel central das Nações Unidas. Ou seja, não há nenhuma proposta de substituir ou enfraquecer o sistema pensado no pós Segunda Guerra Mundial.
Pelo contrário, o que se propõe é seu fortalecimento que passa por uma profunda reforma dando maior poder e voz aos países do Sul Global e com isso garantir prioridades ligadas ao desenvolvimento e democratização do sistema internacional. Com isso, pretende-se democratizar a governança global no sentido de superar a dominação do Ocidente. Há de se lembrar, nesse contexto, que a decisão de impor o dólar como moeda fiduciária, sem lastro, não foi de Bretton Woods, mas uma decisão unilateral do governo Nixon no início da década de 1970.
O processo de incorporação dos seis novos membros deve nortear também futuras ampliações. Sem dúvida a lista de países aspirantes só tende a aumentar. No próximo ano, a cúpula acontecerá em Kazan na Rússia e, em 2025, no Brasil.
O real significado da Cúpula em Joanesburgo vai ficar mais claro daqui há alguns anos, mas não pode haver dúvida que a marca BRICS ganhou em projeção. O desafio é como usar a força dessa marca em benefícios para avanços concretos para os povos do Sul Global.
*Giorgio Romano Schutte, professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB)
** Fonte: Brasil de Fato – As opiniões deste artigo não refletem necessariamente as do Brasil de Fato